sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Da paixão ou da falta dela

Desenganai-vos amigos se por cá vindes na expectativa de ler alguma coisa melíflua, prosa romanceada, quiçá mesmo poesia. Não, o que hoje cá me traz é outra coisa.
A minha avó costuma dizer-se apaixonada. Tem noventa e três anos, quase noventa e quatro, que fará em Janeiro. Tendo perdido o marido e um filho, em 2007 e 2011, respectivamente, costuma dizer-se apaixonada, ou vivendo uma paixão muito grande. Nem mesmo olhando para a tristeza no fundo daqueles olhos azuis consigo entender tanto sofrimento (e ainda bem). Paixão é, para a D. Otília, sinónimo de martírio, dor, e confesso que nela nunca lhe conheci outro. Aprumada e arranjanda (na falta de pêlo na sobrancelha sempre houve um lápis certeiro, mesmo que às ditas por vezes faltasse alguma simetria, desde o arco até à distância do olho, não era defeito, era feitio).
Mas a esta interpretação de paixão opõe-se uma outra, a outra, em que tudo é efervescência, e até a brisa nos pêlos dos braços cria frémitos de prazer (adoro a palavra frémito, lembro-me de a ler ainda em teenager e, mesmo sem saber o que se significava, senti-la espasmodicamente boa). Estar-se apaixonado é sentir que há vida em nós, apalpar cada minuto, cada segundo, como se o tic-tac vibrasse bem cá dentro (pelo menos para mim).
E de estremecimentos chego à generalização que achei por bem aqui vir dividir em vossa sempre tão aprazível companhia. Acho o povo português pouco apaixonado, pouco dado ao tal do frémito. Mesmo que gesticulemos (ou quase) como os italianos e falemos em voz alta e todos ao mesmo tempo (na minha família é assim), falta-nos sangue na guelra, falta-nos portanto paixão:

(daqui)

Nada à propos deixai-me contar-vos de uma discussão completamente idiota que tive no outro dia, num shopping em São João da Madeira. Ia com a minha tia quando encontrámos uns amigos dela. Vinham o pai, a mãe, e as duas filhas, uma delas, a mais velha, de vinte e dois ou vinte e quatro anos, não me lembro bem. Depois dos cumprimentos da praxe e das perguntas entediantes cuja resposta não me interessava, dou pela pela mais velha a dizer que odiava Lisboa. Estava a trabalhar lá há duas semanas e dizia, com furor e brilhozinho nos olhos, ser impossível gostar da cidade. Apeteceu-me estrafegá-la logo ali. Em vez disso disse-lhe ser ainda muito novita (talvez não a melhor forma de abrir as hostes) e dever dar hipótese de se apaixonar pela Lisboa dos fados, das vielas, do rio, e daquela luz que não há mais lado nenhum. Cruzou os braços, teimou que não, jurou a pés juntos ser impossível. Andei doente uns dias com esta conversa e ainda hoje me custa pensar em semelhante provincianismo. Negava-se assim uma miúda a apaixonar-se por um sítio, que podia ser Lisboa ou Barcelos, não importa. Talvez me devesse bastar o seu ódio visceral, mas não. A pequenez de espírito incomoda-me sempre.

4 comentários:

  1. Fizeste-me recordar os anos em que todos os domingos a seguir ao almoço eu começava a ficar rabugento e mal disposto, era algo que vinha devagarinho e se ia apoderando de mim quase sem eu dar por isso. Por volta das 17 eu tinha que estar na feira e apanhar o autocarro que me levaria a mais uma semana de estudo em Lisboa...

    Na altura eu quase nem dava por isso, quando chegava ao campo das cebolas estava conformado e o passeio a pé até São Bento resolvia o resto... com o tempo percebi... não é de Lisboa que eu não gostava, era mesmo do sentimento de vazio que a cidade significava.

    Quando eu apanhava aquele autocarro deixava para trás e bem fresco um fim de semana com os amigos, com as minhas coisas, com as pessoas de quem eu gostava e ia para um mundo em que pouco tinha de meu ou de mim.... é difícil gostar disso.

    Com 22 anos dificilmente se consegue dar um nome a um sentimento destes .... não gostar é o mais fácil.

    Jorge

    ResponderEliminar
  2. Jorge,
    Tens razão no que dizes, mas acho que o problema ali não é da idade e da falta de capacidade de descrição do sentir. Aquela miúda era provinciana até ao tutano, só queria voltar para casa e junto do namorado. Como a minha mãe tratou, desde muito cedo, de me explicar que o mundo não acabava em Oliveira de Azeméis, custa-me ver miúdas com oportunidades não quererem largar o ninho e voar. Mais do que a postura de oposição à cidade -- há quem goste, há quem não goste -- foi a má vontade, a infantilidade, e a tacanhez que me irritaram. Custa-me...
    Um sorriso de Sexta-feira!

    ResponderEliminar
  3. Gostei muito deste post, Maria Bê. Olha, o que essa miúda sente relativamente a Lisboa sinto relativamente a Braga e afins. A tacanhez de espírito e a falta de paixão (do que quer que seja) são fortes opressores da nossa felicidade.

    ResponderEliminar
  4. Cris,
    Ainda bem que gostaste e que de certo modo te tocou.
    Deixa-me todavia perguntar-te se dás hipótese a Braga para te apaixonar. Já experimentaste um passeio pelo centro a meio da manhã? Um gelado ao fim da tarde no Bom Jesus? Como qualquer cidade, tem o seu encanto, mas às vezes é preciso dar-lhe uma hipótese. Melhor ainda, partilhá-la. A hipótese e a cidade.
    Um sorriso e um xi!

    ResponderEliminar